Espuma dos dias… Encruzilhada da esquerda criada por ela própria — “A ruptura do sistema representativo e o caminho para a ditadura”. Por Branko Milanovic

Nota prévia:

Vive-se politicamente um momento complicado, complicadíssimo mesmo, quer a nível nacional quer a nível internacional.

Fiquemo-nos pelo nosso burgo, com eleições à porta e a classe política manchada pela corrupção explícita ou implícita, uma situação que vemos tanto na Madeira como a vemos aqui, no continente. No caso da AD e no continente temo-la a esconder que não tem quadros políticos de qualidade para uma resposta à situação criada e porque os não tem, irá fazer uma campanha terrível de má qualidade, de insultos sobre insultos aos adversários, ou então substitui Luis Montenegro por Passos Coelho, o homem da Troika, o homem pró Chega, o homem que se desfez das joias da coroa portuguesa. Aqui, a história do Pilha-Galinhas do Chega enfraquece este implícito acordo de coligação, mas de uma maneira ou de outra é de esperar que pela Direita iremos assistir a uma campanha extremamente suja.

A tese suave da Direita de que a crítica a Luís Montenegro significa que a esquerda acha que só políticos sem nada na sua conta bancária é que podem ascender ao poder, vai ser utilizada até ao extremo. Mas repare-se naquilo que está implícito nesta suave tese: chegar a uma certa idade e ser materialmente despossuído de tudo é sinal da mais pura incompetência. E pelos vistos o que a esquerda quererá agora, contra Luís Montenegro, será então políticos incompetentes, na vida e na política !

Outra tese, mais suave que a anterior, para a campanha eleitoral, mas menos coerente, é dizer que Luís Montenegro foi burro, burríssimo, porque bastava ter transferido a sua quota na empresa para os filhos e não teria havido problema nenhum. Dito de outra forma, o Luís Montenegro foi burro porque não soube contornar a lei! E aqui quanto à ética, passa-se uma esponja sobre ela, esquece-se o que é que ela representa e faz-se da lógica uma batata.

Quanto à Esquerda, e uma vez que o PS é o partido nela mais relevante, e digo isto porque hoje podemos considerar o PS como um partido de centro-esquerda, ao contrário do PS dos tempos de António Costa que mais parecia um partido com um discurso de um partido colocado ao centro do espetro político e uma prática política de centro direita do que outra coisa, esta Esquerda tem de ter muito cuidado na forma como pode estabelecer a campanha, tem de lutar contra a ideia enraizada no imaginário coletivo de que o PS é um partido como os outros. E isso tem sido verdade até à saída de António Costa, mas hoje tudo aponta para que isso deixou de ser verdade. Mas não há nada mais difícil que lutar contra teses enraizadas na mente popular e confirmadas durante muitos anos. Esperemos, pois, que o PS de Pedro Nuno Santos saiba descortinar as linhas de ataque contra a direita que o possam levar a ele, e a todos nós, à aventura de redescobrir, no exercício do poder, o espírito de Abril. Repare-se que pessoalmente considero o PS como o partido mais relevante na possibilidade de criar um ponto de viragem nas próximas eleições, uma vez que o Bloco de Esquerda vive mais a aquecer-se não nas lutas populares, mas sim na utilização das bandeiras utilizadas pela comunidade LGBT, o Livre vive à procura de se encostar a uma ou outra bandeira empunhada firmemente pelo PS e o PC, apesar de muitos valores politicamente seguros está a sofrer de um problema de comunicação.

Para vos mostrar a gravidade da situação, apresentamos alguns exemplos externos ao caso português, mas com paralelos de situação evidentes, que nos mostram os contextos em que a esquerda tem sido cilindrada. Para que cada um de nós possa refletir nestes exemplos e recolocá-los no quadro da nossa política nacional.

Os textos que aqui vos deixo hoje e nos próximos dois dias são:

  1. Branko Milanovic sobre a Sérvia: A ruptura do sistema representativo e o caminho para a ditadura. Um título e uma situação que dizem tudo.
  2. Mary Harrington: Cuidado com a geração do confinamento. As teses defendidas neste texto ajudarão a perceber em parte a votação em crescendo na Iniciativa Liberal.
  3. Francesca de Benedet: Em toda a Europa, está-se a formar um cordão sanitário contra a esquerda. Um texto que nos dá indicações sobre o comportamento da direita por essa Europa fora, comportamento esse que iremos vê-lo nas próximas eleições tanto pela AD como pela Iniciativa Liberal.

 

Júlio Mota, 21/03/2025


4 min de leitura

A ruptura do sistema representativo e o caminho para a ditadura

(sobre o exemplo da Sérvia)

 Por Branko Milanovic

Publicado por  em 17 de março 2025 (original aqui)

 

                       Fonte: Politico.eu

 

A atual crise política na Sérvia é provavelmente, pela massa de pessoas envolvidas e pela determinação em prosseguir a luta, um dos acontecimentos mais notáveis da história política da Sérvia. No entanto, do ponto de vista da governação, é uma simples repetição dos problemas que têm atormentado a política da Sérvia desde o seu ressurgimento como Principado independente, e depois como Reino, na primeira metade do século XIX. A Sérvia é, tal como a Argentina e a Rússia, para usar a expressão cunhada por V. S. Naipaul, um país com uma história circular: os mesmos acontecimentos com personalidades diferentes repetem-se permanentemente e, aparentemente, para sempre. (Escrevi sobre a história circular da Rússia aqui.) De facto, a Sérvia foi governada em 1825 e em 1925 exatamente da mesma forma que hoje: um líder autoritário que utiliza instrumentos quase democráticos ou consultivos preside a um sistema clientelista que propaga a corrupção a todos os níveis como forma de garantir apoio político suficiente. Dois elementos são fundamentais: o regime autoritário e a corrupção generalizada.

Neste contexto particular, o atual protesto liderado por estudantes parece, pela sua exigência de responsabilização judicial dos culpados de corrupção em massa e de obras públicas de má qualidade, que levaram à morte de 15 pessoas em novembro, ter toda a razão de ser . E, de facto, enquanto movimento espontâneo que teve início entre os jovens universitários, assim foi. Mas quando o protesto se tornou mais massivo, envolvendo grandes segmentos da burguesia urbana e até alguns agricultores e sindicatos, os problemas surgiram.

O movimento apercebeu-se desde cedo que só poderia ser bem sucedido se fosse totalmente apolítico, ou seja, sem ligações a qualquer grupo ou partido político e fora do sistema representativo. Por muito que o regime de Vučić não seja apreciado por muitas pessoas, continua a ganhar a maioria absoluta ou a maioria relativa em todas as eleições: Vučić ganhou as eleições presidenciais de 2022, amplamente livres, por 61% contra 18% do seu rival mais próximo, e o seu partido ganhou 48% do voto popular nas eleições parlamentares de 2023. Os partidos da oposição estão fragmentados por ideologias e lutas incessantes pela liderança. Existe, portanto, uma forte aversão, ou mesmo ódio, ao atual regime, mas essa aversão não pode ser politicamente expressa porque os partidos da oposição são quase igualmente odiados. As razões para a sua irrelevância são muitas, mas não se deve ignorar que, quando, nas suas encarnações anteriores, estavam no poder, geriam mais ou menos o mesmo sistema clientelista e sofriam de corrupção. O regime de Vučić simplesmente exacerbou essas falhas. Em suma, o sistema multipartidário está em rutura e pelo menos 40% da população não tem ninguém que a represente (a taxa de participação nas duas últimas eleições foi inferior a 60%).

O movimento liderado pelos estudantes decidiu assim jogar o jogo da antipolítica. Proibiu as bandeiras ou insígnias dos partidos políticos, bem como a utilização de bandeiras estrangeiras (visando a bandeira da UE, que é muito impopular na Sérvia) e evitou qualquer organização formal. O movimento paralisou o sistema escolar durante os últimos três meses, os estudantes ocuparam universidades, os alunos do ensino secundário fizeram longas marchas por todo o país para espalhar a sua mensagem e as decisões sobre o que fazer a seguir são tomadas, segundo se afirma, por assembleias de estudantes e por votação direta (embora ninguém pareça saber como se processa esta votação nem se é unânime ou não). O movimento (que até não tem nome) comunica através de declarações ou pronunciamentos que parecem vir do alto, das alturas do Olimpo e que, além disso, não são assinados. Os seus adeptos intelectuais avançaram com a ideia de uma democracia popular (direta) sem partidos políticos. O aspeto antipolítico do movimento foi elogiado por filósofos e especialistas como Slavoj Žižek e Yannis Varoufakis.

Mas, embora o trabalho fora da política seja a razão do sucesso do movimento, ele tem um efeito fundamentalmente desestabilizador quando traduzido em política real. Com a atual massa amorfa, que até carece de uma liderança visível, os movimentos não têm ferramentas para envolver os governos e o próprio Vučić. Assim, o movimento assemelha-se mais aos Khmers Vermelhos do que ao Solidarnosc polaco. O Solidarnosc criou imediatamente as estruturas de liderança e encetou as negociações com o governo.

A decisão de não entrar na política e de não se transformar numa organização formal ou num partido político é simultaneamente uma bênção e uma maldição. É uma bênção porque só assim o movimento pode continuar; é uma maldição porque nunca poderá formular as suas exigências numa linguagem política compreensível e melhorar ou mudar o sistema político. Para este último, precisa de descer das suas alturas olímpicas, transformar-se numa organização hierárquica com uma liderança conhecida (não surgiu um único líder em quase quatro meses!), converter a sua linguagem atual num idioma político e esperar, ou ter esperança, de representar politicamente grandes segmentos da população descontente. Mas, uma vez que o faça, desce ao nível dos partidos políticos, que, como já foi referido, são objeto de grande desconfiança. Além disso, à medida que o movimento se desloca para o mundo da política, o facto de conter no seu seio todo o tipo de apoiantes, desde a extrema-direita nacionalista até aos Verdes, aos sociais-democratas e aos liberais pró-europeus, tornar-se-á manifestamente uma coligação tão heterogénea que será impossível de gerir e dissipar-se-á rapidamente.

O movimento, portanto, deve continuar a jogar o mesmo jogo sem fim à vista. Essa situação tornar-se-á, a dada altura, insustentável e o regime de Vučić terá de se tornar mais repressivo e avançar para uma ditadura aberta. Foi exatamente isto o que aconteceu em 1929, quando o Rei Alexandre I proibiu toda a atividade política e impôs uma ditadura pessoal. O movimento apolítico de base ampla conduz, em última análise, a dois resultados: ditadura ou caos. Como o caos não pode durar, em qualquer caso ele produz ditadura. A longo prazo, alguns dos lados positivos do movimento provavelmente permanecerão (da mesma forma que os movimentos estudantis de 1968 transformaram os costumes sociais), mas a curto e médio prazo os seus resultados políticos serão exatamente o oposto daquilo que espera alcançar.

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O autor: Branko Milanović [1953 -] é um economista sérvio-americano mais conhecido pelo seu trabalho sobre distribuição e desigualdade de rendimento, economia do desenvolvimento, economia de transição, economia internacional e instituições financeiras internacionais. Desde janeiro de 2014, é professor visitante no Centro de Pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova Iorque e pesquisador sénior afiliado no Luxembourg Income Study (LIS), um centro de pesquisas sobre desigualdades. Também ensina na London School of Economics e no Institut Barcelona d’Estudis Internacionals (IBEI). Em 2019, foi nomeado presidente honorário da Maddison na Universidade de Groningen. Os seus estudos mostram que pessoas com baixos salários no mundo desenvolvido correspondem a um percentual global de 70% a 90%, e perderam o crescimento do rendimento real nos últimos vinte anos.

 

 

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